190 ANOS DA CHACINA DO RIBEIRÃO SÃO VICENTE: SANGUE, TERRAS E PODER NO SERTÃO DA MARMELADA
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Representação artística do conflito, gerada por IA. |
Há 190 anos, ocorreu às margens do Ribeirão São Vicente, afluente da margem esquerda do Rio São Francisco, um episódio que marcou profundamente a história regional. A chacina que resultou na morte do Major da Guarda Nacional Antônio Teodoro de Mendonça e de integrantes de sua comitiva repercutiu não apenas no Termo da Vila de Pitangui, mas também em Ouro Preto e na corte do Rio de Janeiro. O acontecimento foi consequência direta de décadas de tensões relacionadas à posse da terra, ao exercício abusivo do poder local, às práticas militares de apropriação fundiária e à resistência dos posseiros. Registra-se ainda a participação feminina nesse contexto, elemento que evidencia a complexidade social da região, marcada pelo confronto entre colonos, soldados e grandes proprietários.
A questão fundiária na região
Para compreender o massacre, é
necessário recuar no tempo. Os colonos que primeiro ocuparam a região entre os
rios São Francisco e Indaiá, em sua maioria oriundos de Curvelo e Pitangui,
estabeleceram fazendas com agregados e escravizados, dedicando-se principalmente
à criação de gado vacum e cavalar. As primeiras cartas de sesmaria começaram a
ser expedidas nessa área em 1737, referindo-se aos sesmeiros como
“descobridores” das localidades. Entre eles destacou-se o Capitão José de Faria
Pereira, morador do Distrito do Papagaio (atual Tomás Gonzaga, Município de
Curvelo), que formou um vasto domínio abrangendo terras dos atuais Municípios
de Abaeté, Paineiras, Biquinhas e Morada Nova de Minas. Em 7 de novembro de
1738, obteve uma sesmaria na fazenda da Barra, situada na foz do Rio Paraopeba,
onde mantinha grande criação de gado, adquirida anteriormente de Manoel
Moreira. Em 1741, recebeu nova sesmaria na margem do Rio Indaiá. Três anos
depois, em 1744, conseguiu uma terceira, que se estendia do Indaiá até sua primeira
fazenda da Barra do Paraopeba. Um de seus confrontantes, Tomé Rodrigues da Fonseca, havia
recebido, em abril de 1739, a sesmaria delimitada entre o Ribeirão da Extrema e
o Ribeirão da Marmelada, abrangendo parte do atual território de Paineiras e
Abaeté, incluindo a Serra do Tigre. Essa propriedade seria posteriormente
adquirida pelo Capitão José de Faria Pereira, passando a ser conhecida como
Fazenda das Flores e de Santa Maria.[1]
O Capitão José de Faria, embora
possuísse grandes manadas de gado, não conseguia ocupar integralmente suas
propriedades. Nesse contexto, a partir de 1780, iniciou-se o povoamento da
região conhecida como “Sertão do Ribeirão da Marmelada” e adjacências, muitas
vezes conduzido por roceiros descritos como “sujeitos rústicos e miseráveis”,
sem o título de sesmaria. Entre eles estava José Soares Roma (c. 1738-1818),
natural de Sento Sé, na Bahia, e radicado na região do Rio Abaeté.
Apropriando-se de determinadas áreas no território dos atuais município de Abaeté e Paineiras, organizou-as em fazendas, chamadas de Tigre, Macaúbas e Lagoa dos Patos, que mais tarde
destinou como dote de casamento para suas filhas. Figura típica do sertanejo,
detinha amplos conhecimentos práticos de botânica e medicina popular, técnicas
construtivas, carpintaria e metalurgia, além de um profundo domínio do
território.[2]
A partir de 1792, a região dos
rios Indaiá e Abaeté viveu um processo de ocupação marcado pela presença
militar. O Quartel Geral do Espírito Santo do Indaiá (atual cidade de Quartel
Geral), criado naquele ano, introduziu uma lógica de militarização da posse
fundiária: oficiais e soldados, valendo-se de sua autoridade, ocupavam grandes
áreas, cediam glebas a aliados, impunham barreiras à chegada de novos colonos e
até mesmo vendiam as melhores terras. Embora oficialmente vedadas pela condição
de distrito diamantino, as sesmarias continuaram sendo concedidas a militares e
seus parentes, enfraquecendo a regulação régia e fortalecendo o poder local
desses comandantes, que se transformaram em verdadeiros “senhores do sertão”.[3]
Devido às suas habilidades, José
Soares Roma era homem de prestígio entre os dirigentes militares da região, e
inclusive participou da construção de alguns quartéis de cavalaria. Casou duas
filhas com soldados do Quartel Geral do Indaiá: Teodora casou-se com Joaquim da
Costa Valle, e Florinda das Flores com Silvério Alves de Souza. Este último,
soldado da Cavalaria Regular, deixou as fileiras militares assim que recebeu do
sogro a Fazenda da Serra do Tigre como dote de casamento. Servia como Anspeçada
no Quartel Geral do Indaiá desde, pelo menos, 1799, na 4ª Companhia. Nascera em
Ouro Preto, em 31 de dezembro de 1769, filho de Antônio Alves de Souza,
português de Cabeceiras de Basto, no Arcebispado de Braga, e de Cecília Josefa
da Encarnação, natural de Ouro Preto.
Além de Silvério e Florinda, mais
de trinta famílias se haviam apossado de terras na região, sem título de
sesmaria, sustentando-se com lavouras, forja e comércio, bem como por vínculos
familiares com o Quartel do Indaiá. Juntas, ergueram propriedades agrícolas que
garantiam a subsistência, alimentavam um nascente comércio interno e abasteciam
os empreendimentos de exploração mineral. O acesso à terra, entretanto,
permanecia precário, sujeito às pressões dos contratadores de dízimos.
O dízimo, na época colonial, era
um imposto de caráter régio, embora o nome remetesse à tradição eclesiástica.
Correspondia geralmente à décima parte da produção agrícola, pecuária e até de
alguns gêneros extrativos. O sistema funcionava por meio de arrematações em
leilões trienais: a Coroa entregava a cobrança a particulares, chamados
contratadores de dízimos, que pagavam ao erário um valor fixo pelo direito de
arrecadar em determinada comarca ou distrito. Durante três anos, esses
contratadores ficavam livres para exigir dos produtores a parte devida,
buscando lucrar sobre a diferença entre o que deviam pagar e o que conseguiam
recolher. Na prática, gerava tensões constantes. Os cobradores não só recolhiam
os dízimos em gêneros ou animais, mas também se apoderavam das próprias
fazendas e lavouras quando o produtor não conseguia saldar a cobrança.
No sertão dos rios Abaeté e
Indaiá, o comércio interno era limitado, e a maior parte dos fazendeiros
produzia para o próprio consumo, o que dificultava o pagamento regular do
tributo em moeda ou excedentes comercializáveis. Nesse contexto, foram frequentes
os casos em que os próprios dizimeiros acabavam tornando-se devedores da Real
Fazenda, incapazes de entregar à Coroa o montante que haviam assumido no
contrato de arrematação.
A disputa pela terra
No início do século XIX,
destacou-se como arrematante de dízimos no Termo de Pitangui o Tenente Antônio
Teodoro de Mendonça. Devido a essa atividade, tornou-se dono de extensas glebas
que se estendiam do Rio São Francisco ao Indaiá, sendo um dos maiores
latifundiários da região. Segundo a tradição, sua figura era temida: viajando
com séquito armado, chapéu de couro e até uma cota de malha à prova de balas,
impunha autoridade — o que lhe granjeou, ao mesmo tempo, respeito e
ressentimento.[4]
Com o falecimento do Capitão José
de Faria Pereira, suas terras passaram às mãos de Manoel Pinto da Fonseca.
Devido a pendências financeiras, as fazendas de Manoel foram a leilão e
arrematadas no Julgado do Curvelo pelo Capitão José da Silva Sintra, morador da
Freguesia de Aiuruoca, Comarca do Rio das Mortes. Pouco tempo depois, os
Tenentes Francisco José Ribeiro e seu cunhado Antônio Teodoro de Mendonça,
ambos naturais de Aiuruoca, adquiriram as mesmas propriedades. Em 1808, os
novos proprietários ocuparam as terras com grande quantidade de gado e
determinaram a saída das famílias que as ocupavam, alegando a ilegitimidade de
seus títulos.[5]
Começou então uma longa disputa
nos tribunais. Em 1808, Silvério Alves de Souza, liderando os demais moradores da
região, escreveu uma carta ao juiz de Pitangui, na qual alegava que suas
propriedades não se situavam dentro do terreno comprado por Antônio Teodoro e
seu sócio, e que, por isso, os pedidos de despejo eram infundados. Para
reforçar seu argumento, obteve dos dirigentes da Real Extração Diamantina dos
rios Indaiá e Abaeté — o caixa Doutor Diogo Ribeiro Pereira de Vasconcelos e o
administrador de serviços José da Silva Pereira — atestados declarando ser ele
útil morador daqueles sertões. Já Antônio Teodoro e seu cunhado sustentavam que
seus opositores não possuíam título formal da terra e ocupavam propriedades
legitimamente compradas.[6]
A disputa escalou e chegou ao juiz da Comarca do Rio das Velhas, sediada em Sabará. Silvério chegou a se dirigir ao governador de Minas Gerais, Francisco Portugal, que solicitou à Câmara de Pitangui a emissão de um parecer. Em 1815, a Câmara, após ouvir antigos moradores e consultar registros de sesmaria, concluiu que Silvério e os demais não possuíam títulos legítimos de posse e ocupavam terras alheias.[7]
A chacina de 1835
Apesar do parecer dos vereadores de Pitangui, o litígio permaneceu sem solução. Nesse período, Silvério Alves consolidou sua posição política local ao assumir o cargo de primeiro juiz de paz do recém-criado Distrito do Espírito Santo do Indaiá, função que exerceu nas décadas de 1820 e 1830, o que contribuiu para o prolongamento das disputas judiciais. Em 1835, a situação agravou-se: o agora Major da Guarda Nacional Antônio Teodoro de Mendonça obteve sentença favorável do juiz municipal de Pitangui determinando a expulsão de Silvério Alves das terras em questão. Ciente da gravidade do conflito, redigiu seu testamento em 16 de junho de 1835, dias antes de cumprir a ordem judicial. No dia 29 de junho, dirigiu-se à fazenda do Tigre em diligência oficial, acompanhado por guardas nacionais e escravizados armados, para cumprir a ordem de expropriação.
Após realizarem as formalidades do
despejo, o grupo de Antônio Teodoro foi surpreendido em uma emboscada durante a
viagem de retorno. Ele, um de seus escravizados e três soldados foram mortos a
tiros. Um ofício expedido de Ouro Preto ao ministro da Justiça, José Feliciano
Pinto Coelho da Cunha, relatava o crime e indicava como principal suspeito o
juiz de paz Silvério Alves de Souza. O governo provincial considerou o episódio
um ato de rebeldia contra a ordem e afronta à autoridade imperial. Tropas foram
mobilizadas, processos judiciais instaurados, e os jornais da corte noticiaram
com indignação o “horrível procedimento” que abalava o interior mineiro. [8]
O historiador abaeteense Dr. José
Alves de Oliveira, que coletou informações de registros e testemunhos da época,
localizou dois documentos, ambos datados de 1836, que atestam a veracidade dos
fatos. Um deles é um requerimento do Sargento-Mor Alexandre Ferreira da Silva,
que acompanhou a comitiva de Antônio Teodoro, no qual cobrava da viúva os
16 mil réis que lhe haviam sido prometidos durante a arriscada diligência.
Outra carta é do próprio cunhado de Antônio Teodoro, Francisco José Ribeiro, na
qual afirmava que aquelas terras eram “desgraçadas” e que “ainda mais
desgraçados hão de ser aqueles que lhe tiraram a vida por causa do que
legitimamente era seu”.[9]
Outros aspectos daquele episódio,
embora não confirmados por documentação escrita, foram preservados pela
tradição oral e registrados por Dr. José Alves de Oliveira, cuja pesquisa
merece crédito pela antiguidade das fontes e pela seriedade de seu trabalho,
iniciado já no início do século XX. Segundo o relato por ele recolhido, a
notícia do despejo mobilizou Silvério, Florinda, seus filhos e outros desafetos de Antônio
Teodoro, reunindo-se ao todo trinta e duas pessoas para preparar uma emboscada.
A comitiva de Antônio Teodoro, em retorno da viagem, alcançou a margem esquerda
do Ribeirão São Vicente, nas proximidades de uma ponte. Antecipando riscos,
como era praxe em deslocamentos de natureza conflituosa, Mendonça enviou um
vanguardeiro para inspecionar o terreno. O batedor, porém, foi surpreendido e
morto pelos emboscados, desencadeando o confronto armado. Os homens de Mendonça
enfrentaram inimigos em número superior e posicionados de forma vantajosa na
vegetação do cerrado. Durante o tiroteio, Antônio Teodoro foi alvejado e também
sua montaria, mas ainda assim resistiu e manteve-se no combate até que a
munição se esgotasse em ambos os lados. Já ferido, foi finalmente alcançado
pelos atacantes e, conforme a tradição oral, teria sido João Alves de Sousa,
filho de Silvério, quem disparou o tiro fatal. Dos oito homens que o
acompanhavam, sobreviveram apenas João Inácio de Sousa, Manuel João da Cunha e
Alexandre Ferreira da Silva.[10]
Após o episódio, o corpo de
Antônio Teodoro foi transportado para Abadia (atual Martinho Campos), seguindo
seu pedido registrado, e sepultado ali. Os demais mortos foram inicialmente
conduzidos para o arraial do Quartel Geral, mas devido à decomposição de alguns
corpos, foram enterrados na Fazenda de Santiago, local que passou a ser
conhecido como Cemitério dos Negros ou Capão do Cemitério.
Segundo a tradição oral, D.
Florinda, tida como participante na organização da emboscada, chegou a ser
formalmente processada e submetida a júri em Pitangui, mas foi absolvida.
Silvério Alves, por sua vez, apresentou álibi: no momento do ataque não se encontrava
em sua fazenda, mas sim no Quartel Geral. A legalidade do despejo de Silvério
foi posteriormente reconhecida, ao menos no plano formal, em petição
apresentada pela viúva de Antônio Teodoro, datada de 10 de março de 1838.
Silvério faleceu em julho de 1841. Algumas versões da tradição afirmam que
teria sido assassinado por ordem de Nico Teodoro, filho de Antônio, em um ponto
à margem do Rio Indaiá, desde então conhecido como Pôrto de Silvério Alves,
episódio interpretado como possível ato de vingança pelos acontecimentos de
1835.[11]
Relembrar esse episódio não é apenas resgatar a memória de um confronto sangrento, mas compreender o contexto mais amplo das disputas fundiárias que marcaram a região no século XIX. A morte de Antônio Teodoro e os conflitos que a cercaram ajudam a explicar tensões locais em torno da posse da terra e da autoridade política. Além disso, há um desdobramento histórico de grande relevância: foi justamente no território pertencente ao espólio de Antônio Teodoro que, poucos anos após sua morte, se deu a fundação do Arraial da Marmelada, origem da atual Cidade de Abaeté. Mas essa, como se verá, é matéria para outra história.
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Capitão Pedro Alves de Souza, filho de Silvério Alves de Souza e Florinda das Flores do Nascimento. |
Obs. Para conhecer a biografia de José Soares Roma, clique aqui.
[1]APM SC SG Caixa
4, Documento 6 – Requerimento de Bernardo Nunes de Castro referente à carta de sesmaria
das terras compradas de Gabriel Álvares, localizadas próximas ao Ribeirão dos
Veados, em Vila de Pitangui, 7 de dezembro de 1745; APM SC SG 42 –
Registro de Sesmarias, 1733-1739, fl. 136v.; APM SC SG 72 – Registro de
Sesmarias, 1739-1742, fl. 188; APM SC SG 80 – Registro de Sesmarias, 1743-1745,
fl. 92; APM SC SG 42 – Registro de Sesmarias, 1733-1739, fl. 151v.
[2] Arquivo Público de Paracatu – Inventário de
José Soares Roma, 1818.
[3] Andrade, Pedro Henrique de Almeida. Nova
Lorena Diamantina: História e Memória de Cedro do Abaeté. Clube de Autores,
2025.
[4] OLIVEIRA, José Alves de. História de Abaeté
(temperada com um pouco de sal pimenta). Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1970.
[5] APM AVC Cx. 18, D.14 - Parecer de Pedro Nolasco Correia sobre a demanda entre o Tenente Francisco José Ribeiro e Silvério Álvares de Souza e outro sobre umas terras. Pitangui, 05 de setembro de 1815.
[6] APM
SC SG Cx. 74, D.23 - Requerimento que faz Silvério Alves de Sousa e outros
roceiros e moradores no Sertão da Marmelada, termo de Vila de Pitangui, pedindo
que mande lhes medir uma sesmaria de três léguas, das terras que usufruem,
visto que um tal Antônio Teodoro de Mendonça, alega ser dono da terra e os
ameaçam de despejá-los, sendo que as terras do dito não chegam a confrontar com
as suas. 12 de março de 1812.
[7] APM AVC Cx. 18, D.14 - Parecer de Pedro
Nolasco Correia sobre a demanda entre o Tenente Francisco José Ribeiro e
Silvério Álvares de Souza e outro sobre umas terras. Pitangui, 05 de setembro
de 1815.
[8] Correio Official: In médio
posita virtus, Rio de Janeiro, v.5, 27 de agosto de 1835, p. 1.
[9] OLIVEIRA, José Alves de. História de Abaeté
(temperada com um pouco de sal pimenta). Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1970.
[10] OLIVEIRA, José Alves de. História de Abaeté (temperada com um pouco de sal pimenta). Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1970.
[11] OLIVEIRA, José Alves de. História de Abaeté
(temperada com um pouco de sal pimenta). Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1970.
Nossa região é repleta de histórias, e a cada dia aprendemos mais. Cada conteúdo postado, é um marco para que mais pessoas possam ter o conhecimento de um passado que estava esquecido.
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