HISTÓRIA DA FAZENDA DE SANTA ANA
A fazenda de Santa Ana foi uma importante propriedade rural estando entre as grandes produtoras de açúcar, cachaça, rapadura, toucinho e posteriormente café de toda a região entre o São Francisco e o Indaiá, no então Distrito do Espírito Santo. Localizava-se às margens do Ribeirão de Santa Ana, nas fraldas da Serra da Saudade, freguesia da Senhora das Dores, Termo de Pitangui e Comarca de Sabará. A partir de 1840, com a fundação do Arraial Novo da Marmelada, passa a pertencer a este Curato. (Curato da Senhora do Patrocínio do Arraial Novo - atual cidade de Abaeté-MG).
Mapa da região compreendida entre a Mata da Corda e o Rio São Francisco Feito por Joaquim José da Rocha - 1802. A serra do Capacete aparece com o nome "Coatis". É possível ver o Marmelada nascendo próximo ao Quartel São João e se encontrando com o Córrego Careta mais adiante. A atual fazenda de Santa Ana está localizada entre os Córregos hoje chamados de Carolino e Santa Ana, que deságuam no Ribeirão São Vicente e o Córrego do Quati e Boqueirão também afluentes do S. Vicente. Em destaque, o Quartel de Santa Ana.
Fundação:
A fazenda de Santa Ana originou-se de uma sesmaria emitida para Francisco Antônio Monteiro de Noronha, em 08 de Agosto de 1799 após o mesmo requerer em 16/05/1799 esta mercê pois ali eram terras devolutas. Os limites da sesmaria constam como de" três légoas em quadro as quais confrontam pelo nascente com o córrego da Marmelada, pelo sul com o morro do Tigre, procurando as cabeceiras do [córrego] Santa Ana." (1) É possível notar a inversão entre norte e sul na notação da época. Sabemos por um documento de 1827 que este Francisco Antônio Monteiro de Noronha foi administrador interino do Registro do Picu, atual Itamonte-MG. (6)
Ignorando a que título, o Sargento Mor da Cavalaria Regular de Minas Gerais José de Deus Lopes (1755-1839) estabeleceu-se nesta fazenda junto com sua esposa Dona Joana Helena de Sá e Castro, ampliando seu patrimônio. Como as atividades de mineração de diamantes no Abaeté e Indaiá não prosperaram, encerrando um ciclo, José de Deus Lopes que outrora foi comandante do destacamento do Quartel Geral do Indaiá e ficou responsável pelo que ficou nos rios diamantinos da região, dedicou-se às atividades de agriculura e pecuária. Nos seus limites localizava--se o Quartel (ou presídio) de Santa Ana, uma construção que abrigava os militares e tropas durante a curta experiência de mineração oficial naqueles rios. (2)
Extensão:
Como consta do inventário de José de Deus Lopes (processo arrolado em 1848), os limites desta enorme propriedade eram "Mata da Cabeceira do Quati até a Serra com Capacete, São João e Beira do Indaiá totalizando 3100 alqueires de campos e também de cultura". Além disso, ia também da "mata da Serra para o Sítio Santa Ana Quati". (2) A sede localizava-se a 18 quilômetros (3 léguas) da atual cidade de Abaeté ficando de pé até 1962. Como consta nos autos, um dos seus confrontantes era Boaventura de Moraes Pessoa (fazenda dos Pessoas), outro era a fazenda Gamelão ao sul. Muitos de seus limites eram delimitados por valos (depressões cavadas na terra) e outros por marcos, como na divisa com a fazenda do Gamelão. A fazenda era um importante ponto de referência e de reabastecimento de caravanas que adentravam pelo oeste Mineiro. Depois da fazenda, em direção ao poente, havia profunda escassez de bens de consumo. Por isso, diversos viajantes que passaram por ali, deixaram um registro do local como o naturalista alemão G.W. Freireyss, em 1814, informa em seu livro "Viagem ao Interior do Brasil" que, para oeste, depois da Fazenda não se encontrava "nenhuma habitação". Por ali passaram também o nobre alemão Eschwege e o botânico Sellow.
Karte von Ost-Brasilien de 1831. Barão de Eschwege, mostra a fazenda Santa Ana no camino para o rio Indaiá / Porto dos Pintores.
Sede da fazenda:
A sede como consta nas fotografias era uma bela casa com arquitetura tipicamente colonial, com porão inferior, varanda nos fundos, esteios e baldrame aparentes, telhado de quatro águas e janelas de vergas retas em madeira todas envidraçadas no estilo guilhotina. Havia também um muro de pedras circundando a casa. Segundo relatos sua sala tinha uma grande extensão.
Sede da fazenda Santa Ana, demolida em 1962.
O oficial Cunha Matos, que viajou pela região da margem esquerda do São Francisco nos dá ideia de como eram as propriedades rurais naquelas paragens Sobre as casas dos ricos ele descreve o seguinte:
"tem uma varanda na frente, e dois pequenos quartos para os hóspedes nos extremos dela. No meio do edificio está a sala com uma grande mesa para comer, e alguns bancos ou moxos. Por cima da cabeceira da mesa um pequeno oratório cheio de imagens, À roda da sala estão pendurados as pontas de veado que servem de cabides e guarda roupas. Ao lado da sala ficam dois ou quatro quartos de dormir e no fundo da mesma sala há outros dois entre os quais existe a porta do corredor que vai para a sala das mulheres e para o pátio, onde estão as cozinhas e outras oficinas."
"As casas são feitas de pau a pique e varas atravessadas em lugares de prego serve um delgado cipó, bem poucas são forradas. Esses quartos tem leitos ou catres ou girãos os primeiros são de madeira como os da terra de beira mar. Os catres, em vez de táboas, tem couros crus e os giraos são varas descansadas em travessas. Quase todos os quartos só admitem um moxo além do catre ou leito, e os colchões são de pano de algodão cheios de palha de milho feitas em tiras. Põe-se nas camas unicamente além dos lenções uma coberta de chita ou algodão. (30
Nos autos do inventário, durante a descrição de sequestro de bens é possível ter uma boa ideia da mobília utilizada na casa. Foram descritas com minúcia, à moda dos antigos inventários, todos os móveis. São mesas de madeira com gavetas de diversos tamanhos, canastras grandes e pequenas encouradas de sola preta (revestidas de couro de sola), baús, caixas, um armário, sete catres de armação. Para a prática religiosa, um oratório grande, uma imagem do Senhor Crucificado, crucifixos pequenos em ouro e um castiçal de latão. Para o intelecto, livros de medicina, história, cavalaria e poesia além de livros de assentos. Pratos de folhas de flandres, bandeijas, uma pedra de afiar. Diversas garrafas de vidro (provavelmente para armazenar aguardente), copos de vidro. As armas eram espingardas de fulminante e jogos de pistolas. Havia também um sellim, um espadim, uma faca aparelhada de prata. Nas oficinas, rodas de fiar algodão e um tear. (2)
Canastra encourada e catre de armação, exemplos dos móveis presentes na fazenda. Fotos do Museu da Casa Brasileira.
Dama fiando com a roda. Museu da Casa Brasileira.
Parafraseando Cunha Matos "Todo o homem do sertão anda com espingarda e faca. Já as mulheres sempre estão na almofada ou na roda de fiar. (...) Há o hábito de lavar os pés a noite e em quase todas as casas se reza o terço diariamente." (3)
Casa-grande e senzala (os escravizados):
A relação de escravizados da fazenda em 1848 constam com 30 pessoas (21 homens e 09 mulheres): (2)
Homens: Adão crioulo (18 anos) , Antônio Talaveira (50 anos), Antônio Pedreiro (65 anos), Bento Crioulo (30 anos), Bernardino (30 anos), Caetano Moleque [da Costa] (35 anos), Camilo Congo (22 anos), Carlos Africano [da Costa] (25 anos), Constantino Crioulo (50 anos), Domingos (22 anos), Jacinto Congo (47 anos), João Monjolo (42 anos), José pequeno Africano (da Costa), José Miabano (42 anos), Luiz Congo (46 anos), Martinho Cabra (48 anos), Manoel crioulo (54 anos), Manoelzinho (14 anos), Mateos (58 anos), Pedro Congo (46 anos), Rafael pardo (9 meses), Silvério crioulo (25 anos).
Mulheres: Candida Parda (20 anos) Maria Rumana (40 anos), Jacinta Crioula (65 anos) e uma filha da dita Joana (1 ano) e Rosa Crioula (25 anos), Feliciana da Costa (57 anos), Claudina Crioula (25 anos) , Vicencia (48 anos) [mãe de Bernardino Crioulo].
Estabelecimentos:
Ainda Cunha Matos "Quando se diz que uma fazenda tem boas oficinas deve entender-se que tem grandes barracões ou paioes de milho, um moinho e monjolos" Este era o caso da Santana que contava além da Casa de Vivenda com uma casa de [fazer] Telhas, casa de Ferreiro, casa de Carpintaria, casa do moinho de pedras, um grande Paiol, Engenho de Açúcar movido a Bois (além do tanque de azedar açúcar, escumadeiras, fôrmas de rapadura, etc) e a produção de aguardente em dois alambique de cobre com Capêllo e seus tachos. (3)
Um documento importante para entender o papel da Santa Ana na economia local é a relação de "Casas de Comércio e Agoardente" que o governador de Minas Gerais mandou fazer em 1836. Lemos neste registro que em todo o distrito do Espírito Santo do Indaiá haviam apenas 06 engenhos que fabricavam aguardente, todos movidos por Bois, sendo o Engenho do S.M José de Deus Lopes o primeiro da Lista.
A fazenda contava também com curral de 03 porteiras grandes, chiqueiros, bois de carro, carretão e vários carros de boi.
Após a morte do Sargento Mor (1839):
Pedro Ordonhes da Cunha Lara, refere que a administração e governo da Santa Ana, desde a morte de seu pai, o Major José de Deus Lopes, sempre estiveram entregues a seu irmão Guilherme Ordonhes (falecido em maio de 1845). Pedro refere ainda que após a morte de Guilherme, sua mãe resolver passar algum tempo na Fazenda do Trigueiro (em Conceição do Pará, propriedade do seu genro Coronel Jacinto Álvares) na companhia de Pedro, que retornou depois à Santa Ana à pedido da mãe.
Quando Pedro Ordonhes finalmente assumiu a fazenda, em setembro de 1845, encontrou ali muitos edifícios e com grande falta de mantimentos. Consertou a fornalha das taxas, fez o ladrilhamento da casa, retificou a fornalha do alambique e consertou metade do muro de pedra por empreitada. Além disso, reconstruiu também um valo, que se achava arrasado, levantou a casa da Tenda que estava caída, e a casa do monjolo que estava arruinada, cobriu de capim o chiqueiro, colocou moendas novas no engenho da fazenda, concluiu a obra do Engenho do Bom Jardim fez muitos consertos em ferramentas e demais utensílios, comprou galinhas e remédios para os doentes "por ser aquele lugar muito epidêmico". Fez também consertar o moinho, pagou ao alfaiate muitos feitios de roupas para os escravos. Além disso, para o sustento da casa comprou 06 carros de milho, a 5000 réis cada, pois o pouco que Guilherme plantou havia apodrecido com a enchente. Gastou duas vacas para corte para o sustento da gente da fazenda a preço de 31,000 réis cada. Com tantas pessoas em casa o gasto com o sal na cozinha era de 2 e meia medidas por semana, além de 3 salgas por ano com o gado à razão de 3 bruacas a cada uma salga, fora o sal despendido para conserva de carnes. (2)
Apontamentos econômicos de 1848
O inventário apresenta pormenores das receitas e despesas da fazenda, sendo documento fundamental para compreensão da economia da região em meados do século XIX.. Por isso, reproduzo as seguintes considerações:
Cana:
O Canavial avaliado estava em sóca (primeira produção). Ao todo os canaviais foram avaliados em 850.000 réis na passagem do inventário. Haviam 3 créditos da venda das safras de açúcar de 1845, 1846 e 1847.Água-ardente: vendeu-se diversos barris porém não foi possível realizar a contabilidadade. O barril dessas três safras foi vendido a 1100 réis. Como atesta o relatório de 1836 Modesto Ordonhes da Cunha Lara (filho de José de Deus Lopes) fazia giros pelas fazendas vendendo gêneros de "fazenda secca"
Açúcar:
Vendida à Francisco Adão no valor total de 155.800 Réis, proveniente de 75 arrobas a 2.000 réis cada e 5800 dos sacos em que foi acondicionada. A Antônio Lourenço de 180.320 de 80 arrobas e meia a preço de 2240 réis cada. A Lumonier 797.500 resultantes de 319 arrobas de açúcar vendido a preço de 2500 réis a arroba.
Algodão:
Pedro Ordonhes diz que "Até então nunca se plantou para vender, apenas para vesturário dos escravos". Porém, em contrapartida, Coronel Jacintho refere que isto não seria verdade uma vez que havia 06 rodas a fiar "quase sem interrupção" e que foram encontrados sete arrobas de linha de algodão, evidência que havia sim a venda do excedente.
Porcos:
Pedro Ordonhes realizou a compra de 22 cabeças de porcos na fazenda Macaúbas para sustento e para criar, feita pelo agregado Barcellos. Além de uma porção de frangos e galinhas.
Bois:
Aqui há um interessante registro do nome dos bois de carro, tradição que ainda se mantém na região. Eram eles Bargado, Dourado, Calçado, Fidalgo, Diferente, Moeda, Campolino, Branquinho, Medalha, Redondo, Mimoso, Calçadinho, Moroso, Macaúba, Diamante, Labirinto e Lavarinho.
Demostração das marcas utilizadas no gado, por Pedro Ordonhes (2)
Feitor:
O feitor (capataz) se chamava Jerônimo e recebia salário de 100.000 réis por ano
Campeiros
Jesuíno e João, dois meninos campeiros (que trabalhavam no campo em diversas atividades) que além desta atividade Dona Joana colocou na escola do escrivão Luis Pinto para que aprendessem a ler e a escrever, o que custou 20.000 réis.
Camaradas para ajudar nas derrubada de 1846-1847-1848
90,000 réis cada ano para contratação de trabalhadores que derrubassem as matas, na prática de formar a fazenda. (2)
A administração do Barão do Indaiá:
Em 15 de maio de 1847, Antônio Zacarias Álvares da Silva (futuro Barão do Indaiá) casou-se com Dona Isabel Carolina Ordonhes da Cunha Lara (filha do falecido José de Deus Lopes). Como Isabel foi muito favorecida no inventário de sua mãe (que faleceu em 1848), o poderio econômico do casal preponderou sobre os outros herdeiros, adquirindo as principais zonas produtoras da fazenda. As próximas décadas sobre a administração de Antônio Zacarias seriam de consolidação da Santa Ana como a mais importante propriedade rural dessa circunscrição e de si próprio como principal chefe político local. Em 1887 possuía canaviais capazes de produzir 3.000 arrobas de açúcar. Plantava também o café, tendo 157.000 pés no mesmo ano além de criar cavalos e gado vacum. Modernizou os esquipamentos, onde empregava engenhos de ferro fundido tocados por rodas hidráulicas como atestou o geólogo Francisco de Paula que por lá passou em Abril de 1880, à caminho dos minas de chumbo do Rio Abaeté.
Quando o Dr. Alípio Gama esteve em Abaeté, em 1896 observou o seguinte "A produção principal foi sempre o açúcar e o toucinho em grande parte exportados para o sul de minas, hoje porém a produção do açúcar tem decaído e muitos engenhos há que se conservam em inação desde o tempo da abolição. (...) hoje todos voltam suas vistas para a cultura do café que tem dado resultados muito prometedores." (5)
Com a morte do Barão em 1901, as terras foram distribuídas entre seus numerosos herdeiros. Ainda é possível encontrar Álvares da Silva que ainda possuem propriedades na região. Pela sua extensão, praticamente todo o município atual de Cedro do Abaeté fazia parte da fazenda, o que explica as muitas escrituras onde é possível encontrar o nome "Comum de Santa Ana" o que justifica a necessidade de mais estudos sobre a fazenda.
Fontes:
1 - Auto de Sesmaria 08 ago. 1799 Arquivo Publico Mineiro SC. 289 39v.
2 - Inventário de José de Deus Lopes. 1848. Arquivo de Pitangui - MG.
3 - Itinerario do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão, pelas provincias de Minas Geraes e Goiaz: seguido de huma descripção chorographica de Goiaz, e dos roteiros desta Provincia ás de Mato Grosso e S. Paulo: pelo brigadeiro Raimundo José da Cunha Mattos (escritos entre 1823 e 1826).
4 -Diário de Noticias - RJ 1887.
5 - Relatório parcial da comissão de estudos da nova capital da uniao. rio da Janeiro 1896. pág 65
6 - 16 jun. 1827 Ordens do marquês de Queluz à Junta da Fazenda da Província de Minas
Gerais determinando o pagamento dos ordenados do recém-nomeado
presidente da província, Tomás Xavier Garcia de Almeida, e a emissão de
um parecer sobre o requerimento de Francisco Antônio Monteiro de
Noronha, administrador interino do registro do Picu que pede aumento de
ordenado, pois serve na escrituração na falta de escrivão] Biblioteca Nacional Digital
Vocabulário:
Mocho (moxo): Assento de madeira sem braço nem encosto
Sola: Couro curtido com espessura entre 5 a 6 mm.
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